sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

UMA ÓTIMA EXPLICAÇÃO DA POPULARIDADE DO GUERREIRO NO BRASIL



Santo carioca

Popular no Rio de Janeiro, São Jorge é destaque nas festas religiosas da cidade desde o século XVIII

Beatriz Catão Cruz Santos
  • São Jorge está em alta no Rio de Janeiro. Desde 2002, o dia do santo – 23 de abril – é feriado em todo o estado, sendo comemorado com muita festa. No Centro da cidade, há missas, salvas de canhão, banda de música, barraquinhas e batucada. Nos bairros de Campo Grande e Bangu, por exemplo, os fiéis saem em cavalgada pelas ruas. Em Madureira, a escola de samba Império Serrano organiza carreata e depois uma feijoada na sua quadra.


    Mas a participação do santo guerreiro em celebrações religiosas vem de longa data, ainda no reinado de D. João I (1385-1433), o fundador da Dinastia de Avis (1385-1581). Nessa época, foi instituída a festa de Corpus Christi (Corpo de Deus) em Portugal e São Jorge tornou-se o patrono do país, em substituição a São Tiago (de Castela), passando a figurar nas procissões lusitanas a partir de 1387. Em 1422, outro fato contribuiu para a popularização do santo: o monarca cria a Casa dos Vinte e Quatro, uma instituição por meio da qual os artesãos tinham alguma representação política na Câmara Municipal de Lisboa. D. João I fora alçado ao trono por um movimento que os incluía, e buscava reconhecer este engajamento. Entre eles havia os profissionais do ferro e fogo – como os ferreiros e os serralheiros –, que se organizariam numa irmandade sob a proteção de São Jorge. Portanto, desde D. João I, São Jorge era relacionado, simultaneamente, à monarquia e aos artesãos do ferro e fogo.


    Aos poucos, a celebração religiosa, surgida na Idade Média, tornou-se, sob o patrocínio da monarquia, uma das mais solenes festas do mundo português no século XVIII. Os preparativos começavam com a Câmara Municipal anunciando publicamente a data da festa, que deveria ocorrer sessenta dias após a Páscoa. Mas a data nem sempre coincidia com o calendário cristão. A instituição também nomeava quem carregaria as varas do pálio – sobrecéu portátil com varas que é conduzido em procissões, caminhando debaixo o sacerdote, que leva a custódia –, determinava a limpeza das ruas, o trajeto e o próprio cortejo, seus participantes e a ordem do desfile. Na hora da festa, danças, bonecos gigantes e representações teatrais subvencionadas pelos artesãos se misturavam à procissão, que partia da igreja matriz e percorria as ruas centrais de cada cidade. No governo de D. João V (1708-1750), as manifestações mais populares foram sendo excluídas ou reorganizadas, de forma a tornar a festa mais solene e hierárquica.


    A comemoração rapidamente se espalhou pelos domínios ultramarinos portugueses. No século XVIII, São Jorge saía à frente das procissões de Corpus Christi que animavam o Rio de Janeiro. Nesta cidade, como em Lisboa, a irmandade dedicada ao santo católico se responsabilizava pela preparação de seu patrono e de sua corte. Desde a década de 1740, a irmandade estava instalada na Igreja de Nossa Senhora do Parto, templo aberto à presença de africanos desde a sua fundação, localizado na atual Rua da Assembleia. A mesma igreja também era local de cerimônias de outras irmandades: São José, dos carpinteiros, pedreiros e marceneiros; Santa Cecília, dos músicos, e Santo Elói, dos ourives. De acordo com seu primeiro compromisso (o conjunto de regras que organizava a instituição), firmado em 1757, “todos os mestres que tivessem loja aberta dos ofícios anexos à mesma irmandade, ou seja, os de serralheiro, ferreiro, cuteleiro, espingardeiro, latoeiro, funileiro, caldeireiro, ferrador, espadeiro, dourador e barbeiro” ficavam obrigados a ingressar ali. Não à toa, a agremiação pode ser definida como uma irmandade de ofício. Além de ter a Igreja Católica e a monarquia como referências, a Irmandade de São Jorge adotava como um dos principais critérios o domínio de uma atividade profissional.


    Bem diferente do que acontecia em Lisboa, no Rio de Janeiro as portas da irmandade estavam abertas tanto para os homens livres e brancos como para mulheres, forros e escravos. Para se tornar um oficial e manter-se nessa posição, o irmão precisava cumprir uma série de exigências. Entre elas estava o pagamento de taxas de entrada, anuais e de exame. Em seu primeiro compromisso, os irmãos devotos do “glorioso mártir São Jorge” tentaram barrar o acesso a qualquer “Judeu, Mouro, negro ou mulato ou de outra infecta nação”, atualizando os critérios de limpeza de sangue presentes nas Ordenações do reino: as Ordenações Afonsinas (1446-47); as Ordenações Manuelinas (1514-1521) e as Ordenações Filipinas (1603). Esses critérios, encontrados nas leis gerais do reino, limitavam o acesso a cargos públicos, eclesiásticos e a títulos honoríficos aos cristãos-velhos (aqueles que seriam católicos há pelo menos quatro gerações).


    Mas os estatutos da irmandade acabaram assegurando a presença de proprietários de escravos ao lado de libertos e cativos, que se integravam à agremiação por dominarem algum ofício.


    O Corpo de Deus era a única celebração mencionada no compromisso de 1757. No dia 23 de abril comemorava-se o dia de São Jorge, mas só em 1791 os irmãos viriam a definir como: por meio de missa cantada e sermão. Ainda que de forma breve, eram determinados os ricos adornos que o santo usaria durante a procissão. Também eram indicados dois mordomos que seguiam o santo. Se algum dos irmãos de São Jorge recusasse “tão esplêndido serviço”, logo seria “expulso e riscado da Irmandade”. Também teria que desembolsar uma multa e continuar a pagar os anuais para manter a loja de seu ofício. Caso contrário, não continuaria trabalhando com loja aberta. Para evitar essas faltas, o juiz e o escrivão funcionavam como curingas e exemplos para a corporação, punindo os membros da irmandade que não queriam participar de um dos rituais mais importantes da comunidade.


    Em 1791, quando novo compromisso foi elaborado, as penas ficaram mais rigorosas. No novo estatuto, os irmãos eram obrigados a “compor anualmente a Imagem do senhor São Jorge para ir à Procissão do Corpo de Deus”, com “todo o asseio possível”. Os quatro devotos que conduziriam sua imagem seriam propostos à Câmara, e, caso não comparecessem à festividade, ficariam “condenados cada um na quantia de seis mil réis pagos executivamente da cadeia”. Mas sempre havia espaço para negociação. Os reincidentes não eram expulsos imediatamente, recebendo antes algumas punições. Também existia um sistema de rodízio que tentava garantir a presença de todos no cortejo. Nessa ocasião, também foram incluídos outros tipos de ofício: os picheleiros, que faziam vasos de estanho e de lata de flandres; os seleiros, que produziam selas de animais; e os tanoeiros, que confeccionavam ou consertavam tonéis, pipas ou barris.


    No dia marcado para a festividade, a imagem do santo seguia sobre um cavalo bem arreado e enfeitado. Dois irmãos seguravam nas estribeiras, enquanto outra dupla pegava a rédea do animal. Logo ao lado, um alferes com armas brancas, um pajem todo vestido de vermelho e os tocadores de trombetas e atabaques também cavalgavam. Músicos negros levavam instrumentos de sopro e percussão, atraindo benefícios e exorcizando os malefícios. Eram acompanhados de perto por outros fiéis, que também percorriam o trajeto a pé.


    São Jorge e sua corte apontavam para certa memória da monarquia portuguesa, particularmente da Dinastia de Avis e, simultaneamente, para os elementos populares fornecidos pelos mestres de ferro e fogo à procissão, que exaltava a unidade político-religiosa dos diferentes grupos sociais. Assim, os devotos do santo guerreiro acabavam promovendo um ritual próprio na festa de Corpus Christi, e os juízes e escrivães desses ofícios ocupavam posição de honra nessa aparição. Nas celebrações do Corpo de Deus, a monarquia portuguesa parecia reunir os três corpos da república – “Igreja, Senado e Povo” –, enquanto politicamente o “Povo”, no qual se incluíam os artesãos, ficava excluído dos poderes locais.


    Beatriz Catão Cruz Santos é professora de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de O Corpo de Deus na América (Annablume, 2005).


    Saiba Mais - Bibliografia


    GRUZINKI, Serge. “La fête-Dieu à Mexico ao temps de La Nouvelle-Espagne” in: MOLINIÉ, Antoniette (org.). Le corps de Dieu en Fêtes.  Paris: Lés Éditions Du Clerf, 1996.


    PITREZ, Maria Cláudia. “23 de Abril – festa de São Jorge; um estudo sobre a oficialização da festa de um dia santo em feriado municipal na cidade do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS (dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia), 2007.


    RUBIN, Miri.  Corpus Christi. The Eucharist in Late Medieval Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
    SANTOS, Georgina. Ofício e Sangue, a irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna. Lisboa: Colibri, 2005.


    SCHWARTZ, Stuart. “Ceremonies of Public authority in a colonial capital. The king’s processions and the hierarquies of Power in the seventeenth century Salvador” in: Anais de História de Além-Mar, 5, 2004, pp.7-26.

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